Há exatos cinquenta anos o magnata das comunicações
Francisco de Assis Chateaubriand doava cento e vinte e cinco obras de arte a
Porto Alegre, como parte de um projeto maior, de criar uma rede museus Brasil
afora. Assessorado por Pietro Maria Bardi, diretor artístico do Museu de Arte
de São Paulo – MASP, Chateaubriand presenteou a cidade com pinturas,
esculturas, desenhos e gravuras de artistas de diversas tendências, atuantes
entre o final do século XIX e a década de 1960. Majoritariamente composto por
brasileiros, o conjunto foi, num primeiro momento, instalado no prédio da Rádio
Farroupilha e da TV Piratini para em seguida ser abrigado no Paço Municipal e
depois no MARGS. Transferido para no casarão da avenida Duque de Caxias em 2013,
o legado de Chateaubriand foi batizado de Pinacoteca Ruben Berta, em homenagem
ao ilustre empresário da aviação nascido em Porto Alegre.
Com a finalidade de celebrar o cinquentenário da
Pinacoteca, a mostra A ventura do moderno apresenta um recorte da coleção,
enfocando diferentes aspectos que a arte moderna assumiu no Brasil. As salas
foram organizadas por temas que correspondem aos segmentos deste catálogo. E,
em cada núcleo, buscou-se priorizar diálogos de ordem formal, que implicaram na
renúncia de um rigor cronológico ou analogias de técnicas materiais. Assim, ao
longo da exposição, desenhos e pinturas estabelecem estreito diálogo com
gravuras e esculturas, intencionalmente evitando hierarquias entre linguagens
artísticas. Além disso, a mostra reúne cerca de 30 obras de artistas
procedentes de diversos estados do país, representando, à medida do possível,
um cenário amplo, não acomodado a regionalismos.
É preciso ressaltar que a experiência de transitar
pelo espaço, ora examinando obra a obra, ora agrupando visualmente conjuntos, é
intransponível para a materialidade (ou virtualidade) de um catálogo, cuja
dinâmica reside no folhear de página a página. Ademais,
as narrativas construídas a partir de imagens, em uma exposição, e aquela
concebida com palavras, em um texto, têm naturezas muito distintas. As
histórias que se delineiam pela vizinhança física de trabalhos artísticos
proporcionam diversas possibilidades de associações e leituras, visto que
muitas são as opções apresentadas a um só tempo. O olhar pode vagar de um
trabalho a outro pendurado ao lado, instalado na parede oposta ou entrevisto na
sala seguinte. Cada obra é portadora de conexões em potencial e, a partir dela,
podem-se desdobrar múltiplas narrativas que se entrecruzam, se espelham, se confundem
ou se confrontam à medida que o olhar avança, retrocede, salta ou recomeça. O relato escrito, por sua vez, solicita que o leitor siga
palavra a palavra, linha pós linha, as proposições do historiador. Ambas as
linguagens – a visual e a escrita – têm suas particularidades e seus encantos,
mas não se equivalem. Assim, as estratégias curatoriais, regidas pelo
pensamento visual, migram obrigatoriamente de maneira limitada para o enunciado
conduzido pela lógica da escrita.
Feita esta ressalva, seguem, na abertura de cada segmento do catálogo, notas
que recuperam algumas aproximações possíveis entre as obras apresentadas nas
salas expositivas, ao mesmo tempo em que apontam para diferentes direções que a
arte moderna alcançou no Brasil.
A entrada
Pinturas de dois artistas residentes no Rio Grande do
Sul saúdam os visitantes na antessala da exposição. O predomínio de tons
amarelos aproxima Gente de circo, de Glênio Bianchetti, e Ribeirinha,
de Angelo Guido. Entretanto, essas telas indicam diferentes tendências da
arte moderna: enquanto Ribeirinha lida com uma questão mais
impressionista – da incidência luz na paisagem – Gente de circo afina-se
mais com o silêncio da pintura metafísica, construída com toques cubistas.
Glênio Bianchetti. Gente de circo, 1950. óleo sobre tela |
Ângelo Guido. Ribeirinha, 1948. óleo sobre tela |
Figuras
humanas
A primeira imagem, nesta sala, é o Retrato de
Rodolfo Jozetti, de Cândido Portinari. O jovem modelo – que poucos anos
depois participaria da conservadora Ação Integralista Brasileira – é figurado
em tamanho natural e em consonância com as regras da Academia Nacional de Belas
Artes, onde Portinari estudava à época. Datada de 1928, é bastante provável que
tenha sido exposta ao lado do Retrato de Olegário Mariano, pintura que
lhe renderia o Prêmio de Viagem à Europa na XXXV Exposição Geral de Belas
Artes. Mas para além da fatura tradicional, o que chama atenção é a eloquência
dos atributos escolhidos, que colaboram para uma construção eficiente da imagem
do retratado. Com um livro na mão e uma estante de publicações ao fundo, o
rapaz é figurado como um intelectual promissor. A pose em pé com a mão na
cintura, somado ao olhar direto, conferem um tom de determinação ao modelo,
mesmo quando flagrado de robe de chambre sobre o peito nu, na
informalidade do ambiente doméstico.
Como contraponto ao jovem letrado retratado por
Portinari, a figura feminina traçada por Flavio de Carvalho está nua, sem outros predicados além do próprio corpo.
Parece-nos desnecessário sublinhar o quanto esse par é constrangedoramente
representativo do lugar que o homem e a mulher ocupam na tradição da arte
ocidental.
A verticalidade das duas figuras rebate em outras
obras desse grupo: tanto o Tocador de berimbau de Aldemir Martins,
quanto Guerreiro de Xico Stockinger e Os caciques de Carybé
portam objetos delgados, acentuando o aspecto longilíneo das representações.
Por outro lado, se a qualidade pictórica do Retrato
de Rodolfo Jozetti dialoga com Mãe, de Di Cavalcanti, o grafismo do Nu
de Flavio de Carvalho encontra paralelos em Mangue, de Lasar Segall,
Mulher rendeira, de Sylvio Jaguaribe Ekman, e Menina, de Alice
Soares.
Cândido
Portinari. Retrato de Rodolfo Jozetti, 1928. óleo sobre tela
|
Aldemir
Martins. Tocador de berimbau, 1967. acrílica sobre tela
|
Xico Stockinger. Guerreiro, sem data. bronze | |
Carybé. Os
caciques, 1965. óleo sobre tela
|
Flávio de Carvalho. Nu, 1962. nanquim
sobre papel.
|
Sylvio Jaguaribe Ekman. Mulher rendeira, 1963. crayon sobre papel |
Alice
Soares. Menina, 1955. nanquim e aguada de nogueira
|
Paisagens
Ao considerar esse conjunto de obras, Figuras, de
Di Cavalcanti é uma pintura-chave em vista de sua temática híbrida: se por um
lado ela estabelece um diálogo com a Natureza-morta de Joaquim Lopes Figueira,
por outro ela aproxima-se das demais pela relação com a pintura de paisagem.
Enquanto os elementos em primeiro plano definem uma natureza-morta, o fundo
da pintura configura uma paisagem marítima. A geometrização formal, assim como
os tons azulados empregados por Di Cavalcanti encontram paralelos em Maracatu,
de Marianne Peretti, e Ouro Preto, de Mário Gruber.[1]
Na paisagem noturna da
montanhosa Ouro Preto, o formato convexo da mancha sombria que faz a
transição entre a cidade e o céu se repete com maior contraste em Retirantes,
de Orlando Teruz, e Arraial da Glória, de Carlos Bastos. Na pintura
de Teruz – cujo título, diga-se de passagem, não coincide com a imagem – o
monte escuro se sobressai no cenário, contrastando com a tênue iluminação do
fundo. A fileira de cavalos esvai-se à medida que a estrada em “S” adentra a
pintura em direção ao desconhecido, criando uma profundidade tomada por
mistério. Uma densidade semelhante – mas agora numa desolada zona industrial –
emerge da pintura de Jatyr Antonio Loss. Uma faixa central, pouco iluminada,
atravessa tela de lado a lado, e são as extremidades mais claras – os trilhos
em primeiro plano e o skyline de chaminés ao fundo – que fornecem pistas
para desvendar o todo.
A composição da pintura Arraial
da Glória, de Carlos Bastos, é estruturada de forma inversa: duas barras
escuras emolduram a zona central, mais iluminada. E se a paisagem de Teruz
suscita certa atmosfera de realismo fantástico, a de Bastos possibilita um
encadeamento com a pintura popular, apresentada em outra sala da Pinacoteca
Ruben Berta.
Di Cavalcanti. Figuras, 1967. óleo sobre tela |
Joaquim
Lopes Figueira. Natureza morta, sem data. óleo sobre tela
|
Marianne Peretti.
Maracatu, 1963. óleo sobre tela
|
Mário Gruber. Ouro Preto, 1966. óleo
sobre tela
|
Orlando Teruz.
Retirantes, sem data. óleo sobre tela.
|
Pintura popular
A partir da segunda metade da década de 1940, artistas
sem treinamento formal começaram a ganhar visibilidade no circuito artístico de
São Paulo. O caso do trabalhador rural José Antônio da Silva é célebre:
descoberto por Paulo Mendes de Almeida, Lourival Gomes Machado e João Cruz e
Costa, em São José do Rio Preto, em 1946, dois anos mais tarde teria uma
exposição individual na Galeria Domus, a primeira dedicada exclusivamente à
arte moderna. A mostra teve ótima repercussão e todas as obras foram vendidas.
No início da década de 1950, o eletricista Agostinho
Batista de Freitas comercializava suas pinturas na Praça do Correio, no centro
da cidade, quando foi notado por Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte
de São Paulo. Pouco depois, o Masp lhe dedicaria uma exposição individual.
No Rio de Janeiro, o cantor e
compositor pernambucano Manezinho Araújo, abre um restaurante de comida
nordestina e começa a pintar na década de 1950. Na mesma época, em Porto
Alegre, Guma observa professores e alunos da Escola de Belas Artes, onde
trabalha como zelador, e arrisca-se no entalhe da madeira.
Temas da cultura
popular, como feiras, quermesses e festas em espaços públicos, assim como cenas
rurais são assuntos frequentes desses artistas. Formalmente, a pintura naïf
constitui-se, em geral, pela presença de duas ou mais das seguintes
características: cores chapadas, contornos definidos por linhas, elementos que
se repetem de maneira rítmica. A ausência de profundidade alterna-se com a
perspectiva construída com recursos tais como ruas ou estradas inseridas em
diagonal ou em curva e/ou figuras maiores em primeiro plano e menores ao fundo.
Não raro, pintores com
sólida formação artística se apropriaram desse vocabulário e produziram trabalhos
à maneira do popular, sobretudo a partir de meados da década de 1950. São o
caso, nessa mostra, de Chanina, Rubens Martins Albuquerque e Zorávia Bettiol.
Agostinho
Batista de Freitas. Carro de boi, 1963. óleo sobre tela
|
Chanina. Paisagem, 1967. óleo sobre
tela
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Abstração
Ainda que a arte abstrata tenha ocupado um lugar de
destaque na cena brasileira por mais de uma década, nesta exposição apenas três
obras representam sua vertente lírica, por contingências espaciais. A pintura
monocromática de Wakabayashi dialoga com a gravura em metal de Anna Letycia,
quer pelas formas circulares análogas, quer pela pesquisa em torno das
texturas. A xilogravura de Fayga Ostrower, assim como o trabalho de sua colega
de ofício, encontram na natureza a matéria primordial de sua confecção. Por
outro lado, a sobreposição de figuras pontiagudas na Composição de Fayga
alude remotamente ao concretismo, importante tendência que também integra a
ventura do moderno no Brasil.
Kazuo
Wakabayashi. Branco, 1966. óleo sobre tela
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Anna
Letycia Quadros. Composição, 1966. gravura em metal
|
Fayga
Ostrower. Composição, 1966. xilogravura
|
Regina Teixeira de Barros
[1] A título de curiosidade: quando Mário Gruber pintou Ouro
Preto, encontrava-se em viagem de lua de mel com sua ex-aluna Cecília Helena
Décourt. Informação cedida por Paulo Torres, a quem agradeço.
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