quinta-feira, 26 de abril de 2018

A Ventura do Moderno



Há exatos cinquenta anos o magnata das comunicações Francisco de Assis Chateaubriand doava cento e vinte e cinco obras de arte a Porto Alegre, como parte de um projeto maior, de criar uma rede museus Brasil afora. Assessorado por Pietro Maria Bardi, diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo – MASP, Chateaubriand presenteou a cidade com pinturas, esculturas, desenhos e gravuras de artistas de diversas tendências, atuantes entre o final do século XIX e a década de 1960. Majoritariamente composto por brasileiros, o conjunto foi, num primeiro momento, instalado no prédio da Rádio Farroupilha e da TV Piratini para em seguida ser abrigado no Paço Municipal e depois no MARGS. Transferido para no casarão da avenida Duque de Caxias em 2013, o legado de Chateaubriand foi batizado de Pinacoteca Ruben Berta, em homenagem ao ilustre empresário da aviação nascido em Porto Alegre.
Com a finalidade de celebrar o cinquentenário da Pinacoteca, a mostra A ventura do moderno apresenta um recorte da coleção, enfocando diferentes aspectos que a arte moderna assumiu no Brasil. As salas foram organizadas por temas que correspondem aos segmentos deste catálogo. E, em cada núcleo, buscou-se priorizar diálogos de ordem formal, que implicaram na renúncia de um rigor cronológico ou analogias de técnicas materiais. Assim, ao longo da exposição, desenhos e pinturas estabelecem estreito diálogo com gravuras e esculturas, intencionalmente evitando hierarquias entre linguagens artísticas. Além disso, a mostra reúne cerca de 30 obras de artistas procedentes de diversos estados do país, representando, à medida do possível, um cenário amplo, não acomodado a regionalismos.
É preciso ressaltar que a experiência de transitar pelo espaço, ora examinando obra a obra, ora agrupando visualmente conjuntos, é intransponível para a materialidade (ou virtualidade) de um catálogo, cuja dinâmica reside no folhear de página a página. Ademais, as narrativas construídas a partir de imagens, em uma exposição, e aquela concebida com palavras, em um texto, têm naturezas muito distintas. As histórias que se delineiam pela vizinhança física de trabalhos artísticos proporcionam diversas possibilidades de associações e leituras, visto que muitas são as opções apresentadas a um só tempo. O olhar pode vagar de um trabalho a outro pendurado ao lado, instalado na parede oposta ou entrevisto na sala seguinte. Cada obra é portadora de conexões em potencial e, a partir dela, podem-se desdobrar múltiplas narrativas que se entrecruzam, se espelham, se confundem ou se confrontam à medida que o olhar avança, retrocede, salta ou recomeça. O relato escrito, por sua vez, solicita que o leitor siga palavra a palavra, linha pós linha, as proposições do historiador. Ambas as linguagens – a visual e a escrita – têm suas particularidades e seus encantos, mas não se equivalem. Assim, as estratégias curatoriais, regidas pelo pensamento visual, migram obrigatoriamente de maneira limitada para o enunciado conduzido pela lógica da escrita.
Feita esta ressalva, seguem, na abertura de cada segmento do catálogo, notas que recuperam algumas aproximações possíveis entre as obras apresentadas nas salas expositivas, ao mesmo tempo em que apontam para diferentes direções que a arte moderna alcançou no Brasil.


A entrada

Pinturas de dois artistas residentes no Rio Grande do Sul saúdam os visitantes na antessala da exposição. O predomínio de tons amarelos aproxima Gente de circo, de Glênio Bianchetti, e Ribeirinha, de Angelo Guido. Entretanto, essas telas indicam diferentes tendências da arte moderna: enquanto Ribeirinha lida com uma questão mais impressionista – da incidência luz na paisagem – Gente de circo afina-se mais com o silêncio da pintura metafísica, construída com toques cubistas.

Glênio Bianchetti. Gente de circo, 1950. óleo sobre tela


Ângelo Guido. Ribeirinha, 1948. óleo sobre tela


Figuras humanas
A primeira imagem, nesta sala, é o Retrato de Rodolfo Jozetti, de Cândido Portinari. O jovem modelo – que poucos anos depois participaria da conservadora Ação Integralista Brasileira – é figurado em tamanho natural e em consonância com as regras da Academia Nacional de Belas Artes, onde Portinari estudava à época. Datada de 1928, é bastante provável que tenha sido exposta ao lado do Retrato de Olegário Mariano, pintura que lhe renderia o Prêmio de Viagem à Europa na XXXV Exposição Geral de Belas Artes. Mas para além da fatura tradicional, o que chama atenção é a eloquência dos atributos escolhidos, que colaboram para uma construção eficiente da imagem do retratado. Com um livro na mão e uma estante de publicações ao fundo, o rapaz é figurado como um intelectual promissor. A pose em pé com a mão na cintura, somado ao olhar direto, conferem um tom de determinação ao modelo, mesmo quando flagrado de robe de chambre sobre o peito nu, na informalidade do ambiente doméstico.
Como contraponto ao jovem letrado retratado por Portinari, a figura feminina traçada por Flavio de Carvalho está nua, sem outros predicados além do próprio corpo. Parece-nos desnecessário sublinhar o quanto esse par é constrangedoramente representativo do lugar que o homem e a mulher ocupam na tradição da arte ocidental.
A verticalidade das duas figuras rebate em outras obras desse grupo: tanto o Tocador de berimbau de Aldemir Martins, quanto Guerreiro de Xico Stockinger e Os caciques de Carybé portam objetos delgados, acentuando o aspecto longilíneo das representações.
Por outro lado, se a qualidade pictórica do Retrato de Rodolfo Jozetti dialoga com Mãe, de Di Cavalcanti, o grafismo do Nu de Flavio de Carvalho encontra paralelos em Mangue, de Lasar Segall, Mulher rendeira, de Sylvio Jaguaribe Ekman, e Menina, de Alice Soares.



Cândido Portinari. Retrato de Rodolfo Jozetti, 1928. óleo sobre tela 



Aldemir Martins. Tocador de berimbau, 1967. acrílica sobre tela

 
Xico Stockinger. Guerreiro, sem data. bronze  


Carybé. Os caciques, 1965. óleo sobre tela



Flávio de Carvalho. Nu, 1962. nanquim sobre papel.




Di Cavalcanti. Mãe, sem data. guache sobre papel



Lasar Segall. Grupo de Mangue (do Álbum Mangue), 1943. xilogravura


Sylvio Jaguaribe Ekman. Mulher rendeira, 1963. crayon sobre papel                       
Alice Soares. Menina, 1955. nanquim e aguada de nogueira

Paisagens
Ao considerar esse conjunto de obras, Figuras, de Di Cavalcanti é uma pintura-chave em vista de sua temática híbrida: se por um lado ela estabelece um diálogo com a Natureza-morta de Joaquim Lopes Figueira, por outro ela aproxima-se das demais pela relação com a pintura de paisagem. Enquanto os elementos em primeiro plano definem uma natureza-morta, o fundo da pintura configura uma paisagem marítima. A geometrização formal, assim como os tons azulados empregados por Di Cavalcanti encontram paralelos em Maracatu, de Marianne Peretti, e Ouro Preto, de Mário Gruber.[1]
            Na paisagem noturna da montanhosa Ouro Preto, o formato convexo da mancha sombria que faz a transição entre a cidade e o céu se repete com maior contraste em Retirantes, de Orlando Teruz, e Arraial da Glória, de Carlos Bastos. Na pintura de Teruz – cujo título, diga-se de passagem, não coincide com a imagem – o monte escuro se sobressai no cenário, contrastando com a tênue iluminação do fundo. A fileira de cavalos esvai-se à medida que a estrada em “S” adentra a pintura em direção ao desconhecido, criando uma profundidade tomada por mistério. Uma densidade semelhante – mas agora numa desolada zona industrial – emerge da pintura de Jatyr Antonio Loss. Uma faixa central, pouco iluminada, atravessa tela de lado a lado, e são as extremidades mais claras – os trilhos em primeiro plano e o skyline de chaminés ao fundo – que fornecem pistas para desvendar o todo.
            A composição da pintura Arraial da Glória, de Carlos Bastos, é estruturada de forma inversa: duas barras escuras emolduram a zona central, mais iluminada. E se a paisagem de Teruz suscita certa atmosfera de realismo fantástico, a de Bastos possibilita um encadeamento com a pintura popular, apresentada em outra sala da Pinacoteca Ruben Berta.


Di Cavalcanti. Figuras, 1967. óleo sobre tela   
Joaquim Lopes Figueira. Natureza morta, sem data. óleo sobre tela
Marianne Peretti. Maracatu, 1963. óleo sobre tela


Mário Gruber. Ouro Preto, 1966. óleo sobre tela
Orlando Teruz. Retirantes, sem data. óleo sobre tela. 



Carlos Bastos. Arraial da glória, 1966. óleo sobre tela


Jatyr Loss. Zona industrial, 1962. óleo sobre tela


Pintura popular
A partir da segunda metade da década de 1940, artistas sem treinamento formal começaram a ganhar visibilidade no circuito artístico de São Paulo. O caso do trabalhador rural José Antônio da Silva é célebre: descoberto por Paulo Mendes de Almeida, Lourival Gomes Machado e João Cruz e Costa, em São José do Rio Preto, em 1946, dois anos mais tarde teria uma exposição individual na Galeria Domus, a primeira dedicada exclusivamente à arte moderna. A mostra teve ótima repercussão e todas as obras foram vendidas.
No início da década de 1950, o eletricista Agostinho Batista de Freitas comercializava suas pinturas na Praça do Correio, no centro da cidade, quando foi notado por Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo. Pouco depois, o Masp lhe dedicaria uma exposição individual. 
            No Rio de Janeiro, o cantor e compositor pernambucano Manezinho Araújo, abre um restaurante de comida nordestina e começa a pintar na década de 1950. Na mesma época, em Porto Alegre, Guma observa professores e alunos da Escola de Belas Artes, onde trabalha como zelador, e arrisca-se no entalhe da madeira.
            Temas da cultura popular, como feiras, quermesses e festas em espaços públicos, assim como cenas rurais são assuntos frequentes desses artistas. Formalmente, a pintura naïf constitui-se, em geral, pela presença de duas ou mais das seguintes características: cores chapadas, contornos definidos por linhas, elementos que se repetem de maneira rítmica. A ausência de profundidade alterna-se com a perspectiva construída com recursos tais como ruas ou estradas inseridas em diagonal ou em curva e/ou figuras maiores em primeiro plano e menores ao fundo.
            Não raro, pintores com sólida formação artística se apropriaram desse vocabulário e produziram trabalhos à maneira do popular, sobretudo a partir de meados da década de 1950. São o caso, nessa mostra, de Chanina, Rubens Martins Albuquerque e Zorávia Bettiol.



Agostinho Batista de Freitas. Carro de boi, 1963. óleo sobre tela



Manezinho Araújo. Quermesse, 1966. óleo sobre tela


 
Guma. Brandão, 1971. madeira


 
Chanina. Paisagem, 1967. óleo sobre tela
   

Rubens Martins Albuquerque. Floresta pré-histórica, sem data. óleo sobre papel



Zorávia Bettiol. Passeio no Parque, 1965. xilogravura

Abstração
Ainda que a arte abstrata tenha ocupado um lugar de destaque na cena brasileira por mais de uma década, nesta exposição apenas três obras representam sua vertente lírica, por contingências espaciais. A pintura monocromática de Wakabayashi dialoga com a gravura em metal de Anna Letycia, quer pelas formas circulares análogas, quer pela pesquisa em torno das texturas. A xilogravura de Fayga Ostrower, assim como o trabalho de sua colega de ofício, encontram na natureza a matéria primordial de sua confecção. Por outro lado, a sobreposição de figuras pontiagudas na Composição de Fayga alude remotamente ao concretismo, importante tendência que também integra a ventura do moderno no Brasil.

Kazuo Wakabayashi. Branco, 1966. óleo sobre tela

Anna Letycia Quadros. Composição, 1966. gravura em metal

Fayga Ostrower. Composição, 1966. xilogravura

Regina Teixeira de Barros


[1] A título de curiosidade: quando Mário Gruber pintou Ouro Preto, encontrava-se em viagem de lua de mel com sua ex-aluna Cecília Helena Décourt. Informação cedida por Paulo Torres, a quem agradeço.

Nenhum comentário:

Postar um comentário